quarta-feira, 7 de março de 2018

Professor na Damaia, Amadora




Cheguei a uma escola nova na Damaia, Amadora. Era o meu 14º ano de trabalho no final dos anos 80. Vinha ainda consternado pela forma como os governantes tinham acabado com a experiência pedagógica em que tinha participado com tanto entusiasmo, as Unidades de Orientação Educativa (UOE). Era um serviço de apoio às escolas, ainda hoje necessário, e contudo, bastou uma assinatura dum secretário de estado qualquer e.... acabou-se! Foram cinco anos de prática pedagógicas inovadoras, refletidas e sistematizadas, interrompidas por uma assinatura.
Tinha de fazer o luto. Dos colegas e dos alunos. E duma parte significativa da minha vida. Aqueles cinco anos passados perdurarão como uma ilha fantástica, na minha memória profissional e  na minha vida.
 A vida de professor não dá muito tempo livre para lamber as feridas da indignação. A exigência do dia a dia é tão grande que nos empurra para novas realidades, novos colegas, novos alunos e novas dinâmicas.

A nova escola do 1º ciclo tinha à volta de 22 professores e um diretor eleito pelos colegas. Havia um grande espaço exterior, mas não tinha ginásio, nem biblioteca.
Eu iria fazer apoio pedagógico a crianças com dificuldades escolares. Neste grupo cabiam alguns deficientes, outros imaturos e a maior parte, contestatários da ordem ou desordem reinante na família, na escola ou em ambas, enfim, alunos com Necessidades Educativas Especiais. 
Os Professores das turmas sinalizavam os alunos em questão e de acordo com a sua problemática, assim eram selecionados para o apoio pedagógico.
Os alunos iam à sua turma de origem e em horário alternativo tinham apoio pedagógico, bissemanal, durante 1hora e 30m. 
Passado estes anos, consigo lembrar-me do esforço em encontrar materiais e mobiliário que aproximassem mais a minha sala da imagem duma oficina, ou atelier, que da escola tradicional. Assim, para além dum sofá, havia um pequeno quadro, onde os alunos gostavam de ir desenhar, rabiscar, fazer a catarse das frustrações, culpabilidades  e memórias de insucessos públicos, na família e na turma de origem. Tinha organizado um quadro de tarefas, e registo da produção individual, quer em textos livres produzidos e trabalhados, quer da realização de fichas e outros exercícios na área da matemática e leitura, experiências...
No meio da sala estava uma mesa maior com cinco cadeiras. Uma para mim e as outras para eles. Nos cantos havia mais mesas que serviam de apoio aos diversos materiais e cantos de trabalho. Em toda a volta havia murais, onde sobressaiam os trabalhos dos alunos, registos de trabalho e aspectos de organização.
O material de desgaste, canetas, lápis, folhas de papel, cartolinas, tintas, pincéis estavam disponíveis livremente, para quem quisesse servir-se.
Existia ainda, uma pequena biblioteca organizada por temas: poesia, histórias, matemática e livros de consulta. Na lombada tinha colado uma cor diferente para cada secção, o que permitia aos alunos mais distraídos, ou que não soubessem ler e escrever, arrumá-los na prateleira certa!
Eu e os alunos tínhamos muito gosto em trabalhar naquele espaço, um pouco alternativo à aridez da sala de aula, mais tradicional.

Tinha conseguido uma imprensa Freinet, umas máquina antigas, de escrever e de calcular,  as mais apetecidas, porque eles adoravam fazer girar as manivelas e ver os números a saltar,  numa dança difícil de entender. Pensava, com isso, suscitar-lhes a curiosidade para a descoberta das letras, dos números e...do mundo. 
Um dos jogos interessantes era cada um fazer cálculos de probabilidades de quanto seriam, por exemplo,  11x11, 12x12... Verificávamos o resultado na máquina e ganhava quem se aproximasse mais do resultado exato. As dificuldades iam aumentando ou diminuindo de acordo com o nível de competência dos alunos. Claro que também a utilizávamos para apoio a outros cálculos, mas era destes jogos que mais gostavam, e uma das razões é que todas as contribuições eram valorizadas, os disparates eram tentativas de aproximação e os erros eram divertidos. Os erros podiam ser meios de aprendizagem e divertidos!
Quando os textos eram pequenos, compúnhamos na imprensa Freinet, que era uma adaptação duma caixa com caracteres de chumbo, tipográficos. Após a escolha das letras e colocação invertida nos componedores, podiam ser lidas recorrendo a um espelho. Com um rolo embebido em tinta tipográfica espalhávamos a tinta e numa prensa... aparecia no papel gravado o texto. 
No rosto deles aparecia sempre a revelação, a surpresa da descoberta da comunicação à distância, que a escrita permite, e da memória e poder da palavra escrita: É o meu texto!
Para textos maiores, tinha encontrado nos armazéns do Património do Estado, em Xabregas, um duplicador a tinta, que trabalhava com um stencil. Então, o processo era diferente. Escolhíamos o texto, trabalhávamos no quadro e depois o autor passava par o stencil na máquina de escrever e duplicávamo-lo, as vezes necessárias, para distribuir  pelos colegas na turma, na escola, em casa, aos amigos, etc.
Havia ainda, um computador onde só experimentávamos o programa Logo, do projeto Minerva. Era um tempo em que não havia mais nada. Nem jogos, nem processador de texto. Era uma tartaruga que obedecia a ordens, para a frente (PF), para trás (PT), vira a direita (VD), vira a esquerda (VE), com a indicação do nº de passos necessários, por exemplo VD 90, assim se obtida um ângulo recto. A tartaruga com um lápis na barriga deixava no ecrã um rasto que poderia ser figuras geométricas, esboços de casas, carros...
Fazíamos slides com tintas entre dois acetatos, ou intercalando pequenos insectos, folhinhas, cabelos, etc. e projetavamos na parede. Extasiados com a ampliação na parede, os olhos brilhavam e analisávamos alguns pormenores interessantes. E no ar ficava sempre um e se?  Sim,  e se fosse desta forma? E se puséssemos mais cor, outra cor, outra forma, outra coisa? E se? 
No próximo dia experimentávamos. Novamente os olhares curiosos de quem não quer desistir, de descobrir o mundo.
Também fazíamos experiências semelhantes com um retroprojetor. Colocávamos no projetor objetos ocultos (livro, apagador de giz, caneta, bola, etc..) e tentávamos descobrir na projeção, a duas dimensões, a que objetos se referiam. Transformávamos assim as três dimensões em duas. Pena era o retroprojetor não fazer o caminho inverso! Teríamos que esperar anos e anos pelo computador!
Havia ainda um pequeno estojo de carpintaria, com uma pequena bancada e material mínimo, martelo, alicate, serra, serrote, lixa, um pirogravador, onde depois de cortar e lixar faziam pequenos trabalhos pintados ou gravados a quente.
Era assim que estes alunos despertavam para a vida e para a cultura. Este processo era tão interessante e natural, que era frequente algum dizer: 
“Aqui já sei ler e escrever, mas na sala ainda não”. 
Fazia um esforço constante de valorização do papel do professor, da turma e uma preocupação de transferir os êxitos individuais para o reconhecimento na turma. 
O seu entusiasmo e investimento nestas atividades era notório. A novidade, a valorização e respeito pela sua pessoa, a empatia com os seus problemas e o funcionamento em pequenos grupos de 3 ou 4 alunos, permitiam relativizar as dificuldades e ultrapassá-las com a ajuda de todos.
Quando havia algum problema de comportamento, fazíamos um contrato, explicitando as regras de funcionamento social, que eles se comprometiam a respeitar e todos os dias, e depois semanalmente avaliávamos e decidíamos prosseguir ou suspender. Os êxitos eram sempre valorizados socialmente, no grupo e na turma. 
Havia ainda bolas e jogos que, como os livros, podiam requisitar para casa.
Como no recreio tinham dificuldade em serem aceites pelos outros, que normalmente só jogavam futebol, combinamos com o diretor da escola e pintamos no recreio um conjunto de jogos tradicionais, para que todos pudessem jogar: o caracol, o polícia e os ladrões, a macaca, etc. Escrevemos as regras dos jogos e colocamos no interior da janela, para que todos pudessem ler do recreio. Foi um êxito. Os colegas de turma, no intervalo, vinham regularmente jogar e era um prazer imenso ver estes alunos a explicar as regras aos outros.
A maior dificuldade residia na comunicação com os professores das turmas. A maioria eram professoras. Havia apenas três homens. Um era o diretor, o outro lia o jornal durante as reuniões. Elas tinham pouca disponibilidade para permanecer na escola, mais tempo que o das aulas. A vida exigia-lhes muito.
As únicas oportunidades para falar dos alunos era na meia hora do intervalo, enquanto tomávamos café. Era precisamente o tempo que elas precisavam para desanuviar da tensão da sala de aula. 
Normalmente as conversas versavam tudo menos a escola e os alunos. AS colegas usavam os intervalos para descomprimir da tensão da sala de aula. O vestuário, a moda e a culinária deviam ocupar a maior parte do tempo, o que me dificultava a comunicação. 
Perante a frustração das minhas tentativas iniciais em falar dos alunos, resolvi que o melhor era pelo menos experimentar algumas receitas em casa, ler outras e saber pequenos truques, para poder entrar na conversa. Por exemplo, na Beira Baixa há o costume de passar a faca no limão, antes de cada corte no melão. 
E foi desta forma que os pequenos grupos de colegas se alargaram para me dar espaço a falar de culinária. Primeiro ouvia, ouvia, quando achava oportuno, introduzia uma novidade, recolhia a admiração geral e antes que a campainha tocasse, tinha dois ou três minutos para elogiar o trabalho da colega com o aluno comum, salientando os seus progressos  na aprendizagem. Às vezes a colega ruborizava, incomodada pelas palavras elogiosas, e manifestava a admiração: 
- Ai sim... Ele falou de mim?
Eu dizia que sim. E muito bem. Está a começar a gostar da escola e de aprender. Graças à colega. 
Reconheço que às vezes exagerava um bocadinho. Era preciso que a Professora dirigisse o seu olhar, atenção, o cuidado, a expectativa para aquele aluno, de quem já tinha desistido, e por isso, ele não aprendia. Claro que também dizia ao aluno que a Professora tinha perguntado por ele e se interessava pela sua aprendizagem. E se esta preocupação recíproca funcionasse, iria repercutir-se no êxito dos alunos, principalmente nos que tinham problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem. 
Tinha sido eleito um novo diretor, o Prof. Alexandrino. Ele tinha tirado o curso de Educação Especial, mas tinha regressado à turma até agora. Esse facto facilitou muito a nossa comunicação e início de amizade.
Um dia veio dizer-me que a colega nova, a quem tinha sido atribuída uma turma deslocada compulsivamente, doutra escola em obras, estava com muitas dificuldades. Os alunos eram quase na totalidade negros e sentiam a rejeição da escola dos brancos. O diretor estava a pedir-me ajuda para este caso. Falamos muito sobre esta turma, o modo de constituição, as razões que impediram a sua dissolução noutras turmas, promovendo assim a integração destes meninos negros, escorraçados do seu meio e sentindo a hostilidade com que foram recebidos numa escola estranha.
No final acabei por lhe dizer que a colega podia contar com a minha ajuda. Quando pudesse que viesse falar comigo.
Os dias iam passando. Os problemas continuavam. Ou dentro da turma, ou no recreio com outros alunos da escola e com as Auxiliares também. 
Ele continuava a lamentar-se, mas ela não vinha falar. Mandava recado por ele. Eu resistia. Ela teria de pedir ajuda se queria ser ajudada. Sabia que devia resistir a meter-me na sua sala e sabe-se lá, ouvir as suas queixas, à frente dos alunos.
Um dia, ela não aguentou mais e veio. Recebia-a muito bem na minha sala de trabalho e conversamos. Era o seu 4º ano de trabalho e não estava preparada para enfrentar esta situação. Casada recentemente, morava em Benfica e tinha uma vida familiar e financeira muito tranquila. A escola tinha-lhe entregue a turma mais difícil e ficaram todos a ver  a colega a tentar sobreviver.
Penso que ainda hoje não há estruturas e preocupação de acompanhamento aos colegas novos e sem experiência. Normalmente, como na tropa, entregam os piores trabalhos aos recrutas. O que os mais experientes e sabedores, “os coronéis” não querem. Desabafou... chorou e queixou-se de quase todos os alunos. Eu disse como me propunha ajudar. Conversando com ela e ajudando-a a refletir, planear e executar as atividades  necessárias. 
Fomos marcando reuniões regulares e comecei por lhe dizer como organizava o meu trabalho e como ela podia ir introduzindo na sua sala alguns desses instrumentos e atividades, de forma que eles se sentisse valorizados.
Corajosamente ela foi implementando o Jornal de Parede e  a Assembleia de Turma. As regras da sala definidas em conjunto e duma forma positiva. O Plano Semanal de Trabalho. A divisão das tarefas e atribuição de  responsabilidades. 
Também falamos na expressão livre, nos textos livres e no jornal de turma. No dicionário de crioulo, pois os alunos eram de origem caboverdeana. Da música e da alimentação crioula. Do respeito que nos mereciam estes meninos e a sua história de vida.
O tempo foi passando e lentamente a colega recuperou o sorriso. 
Um dia ela disse que a turma estava muito diferente, os alunos mais calmos e trabalhadores. Respeitosos e cumpridores, embora alguns tivessem muitas dificuldades. Mas sentia que ainda faltava qualquer coisa, mas não sabia bem o quê. 
Olhei-a fixamente nos olhos. Após um período de silêncio, ousei dizer-lhe:
-  Falta dizeres-lhes que gostas deles. Tu gostas deles?
Quando acabei de perguntar tive algum receio. Não me tinha precipitado a fazer esta pergunta? E se ela agora me dissesse que não, o que faria, ou diria eu?
Já não havia nada a fazer. Tínhamos construído uma relação profissional de grande compreensão e solidariedade. Por isso, me senti à vontade para o passo grande, que tinha dado. E eu sentia isso.  Ela tinha sido uma boa professora, responsável a implementar as sugestões negociadas em conjunto. Mas ... faltava uma chama, um calor que contagiasse aquele grupo e os fizesse acordar com entusiasmo e vontade de vir para a escola.
Por fim, ela compreendeu, sorriu-me e disse, primeiro receosa, mas depois com convicção:
-  Gosto... gosto deles. Eles são giros! 
E pela primeira vez vi-lhe um sorriso largo e farto...
-  Então vai e diz-lhes isso. Inventa tu a forma de lhes dizer. A melhor maneira que tu entenderes... e souberes!
O ano acabou bem. O diretor reconheceu a forma como ultrapassamos a situação. Mas um dia, a sós, perguntou-me: Mas porque demoraste tanto tempo a ajudar a colega?
Porque era preciso que ela entendesse que teria de ser ela a dar a volta. Eu não podia apoiar a turma toda, desresponsabilizando-a. Para termos êxito, ela teria de arregaçar as mangas, aceitar a ajuda, e ir à luta. 
No ano seguinte soube que participou na elaboração de manuais escolares e se tinha inscrito na Licenciatura em Ciências da Educação, na Universidade de Lisboa. Foi uma surpresa muito agradável...  Tal como com os alunos, também nos adultos, o êxito mobiliza energias e cria uma dinâmica de sucesso.

Manuel Rodas

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